O elogio ao abandono
Um artigo em seis partes sobre a magia dos locais esquecidos pela civilização
Olá, leitor. Como você tem passado?
Depois de um grande hiato, resolvi voltar a escrever pro Substack. É, sei que dei um chá de sumiço. Peço desculpas por isso. Não sei por que abandonei os meus poucos e curiosos leitores no momento em que precisava deles.
Às vezes, nem eu mesmo me compreendo. Creio que precisava urgentemente de um tempo para reorganizar meus objetivos literários. Somente com os meus olhos fechados, consigo enxergar melhor.
Quem sabe, a página em branco estivesse me assustando. Não sou escritor de não ficção. Ou andei querendo acreditar nisso. Nunca saberemos.
Enfim, é bom estar de volta.
Portanto, pegue um cafézinho e o cobertor. Coloque uma playlist bacana pra tocar e faça uma leitura tranquila.
Já adianto que esse texto é gigantesco e está dividido em seis partes. Se surgir alguma dúvida, basta levantar o dedo.
Estarei aqui ao seu lado.
“De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.”
Em busca do tempo perdido (1913) de Marcel Proust.
1.
Uma resposta sincera? Não sei por que me dou ao trabalho. Um empreendimento assim não passa de masoquismo. O meu relógio Casio é incapaz de cronometrar a minha missão com precisão suficiente. O pêndulo da sala de estar diz que é um plano sofrível. Talvez suicida. E, claro, um pouco imbecil. O Tempo, o maldito Tempo, é igual à fumaça: escapa pelos dedos e desaparece. Por que insisto em reorganizar o encardido álbum de fotografias que é minha vida? Que é a vida de qualquer um, certo? Por que digo a mim mesmo, com tanta urgência, que preciso recuperar meu passado para viver em paz?
Ele — o passado — é um espelho fragmentado. É capaz de refletir seu rosto, mas até certo ponto. O que você vê é uma tentativa fractalizada da sua identidade. Miniaturas. Ou um quebra-cabeça. A fotografia 3x4 do RG. O espelho está partido em mil pedaços assim como sua percepção de si. Uma boca. Um par de olhos castanhos. O lóbulo de uma orelha. No espelho, vivendo por aparelhos, seus reflexos não desistem de te alertar. Apesar de ser uma missão impossível. Apesar desses resumos não falarem a mesma língua que você, eles tentam estabelecer contato.
Os raios pálidos do entardecer atravessam o vidro das basculantes, caindo como um véu perolado sobre o espelho. A brancura incandescente é cegante. Em instantes, queima suas retinas. Porém, finalmente, o seu terceiro olho está aberto. Na superfície luminosa, as fronteiras dos reflexos se diluem, desenvolvendo unidade e devolvendo sentido. Enfim chega o momento de pôr em palavras o que você não compreende sobre si. É a sua chance. O intervalo de tempo é curtíssimo. O momento certo é o agora, então você pega impulso e se lança contra o halo fulgurante.
O sangue de suas artérias borbulha. É árduo estabilizar a comichão no que restou da sua consciência. Não é como se estivéssemos alienados do fato de que seria uma realização complexa, não é mesmo? Nós estamos aqui por livre e espontânea vontade e precisamos aproveitar essa janela. Aproveitar a vista pela janela.
Se não conseguir desmistificar o que está rolando, provavelmente explodirei como uma supernova. Na minha caixa de ferramentas, a maioria dos artefatos ficou enferrujada graças à ação do Tempo. No entanto, sobrevive essa chave Philips atemporal que é a escrita: o meu bem mais valioso. Com ela em mãos, consigo consertar portas, janelas e escadas. Claro, posso tentar dar um jeito no espelho quebrado. É uma tarefa difícil, mas não impossível.
O que me resta é sentar a bunda na cadeira e tentar escrever uma ou duas frases que prestem. Irei localizar e catalogar os pedacinhos do espelho como um investigador forense. A cena do crime está um caos. Talvez eu me corte. Talvez eu sangre. Quem sabe, me perca. Contudo, não abrirei mão de compreender esses elementos mnemônicos nem que seja um pouquinho. Irei construir um castelo de cartas. Eu sei. Mas preciso. Quero resumir o passado para localizar o presente e prever o futuro. Ou, ao menos, morrer tentando, pois nem sempre posso contar com a sorte das estrelas.
Aceito o acordo e assino embaixo. Já morri vezes demais, então não vou criar um caso. O passado é um empreendimento arquitetônico. Se ficar de pé, melhor assim. Se vier abaixo, dos escombros renascerei. O reflexo radiante que me acolheu começa a se deslocar lentamente. Em seguida, acelera até a velocidade da luz. O local de destino é a infância. Não poderia ser outro.
2.
Sou um satélite patinando no tecido negro que cerca o Planeta Terra. A força G puxa a corda invisível do meu umbigo com um solavanco. Rasgo a cortina cálida da exosfera. Atravesso violentamente a termosfera, a mesosfera e a estratosfera. O vendaval proporcionado pela velocidade da queda infla minhas roupas, transformando-me num pequeno balão no meio dos cobertores de nuvens da troposfera.
A queda termina num parquinho. O ar cheira à pipoca. Nenhum responsável segura minha mão, então sou carregado pela intuição. Quando caminho, minhas sandálias do Ben 10 afundam na areia farelenta, produzindo o crunch-crunch de alguém mastigando biscoitos Maizena. Os dedos lambuzados de algodão-doce rosa. A vertigem do carrossel no qual a felicidade da crianças é confundida com desespero. Os adultos simpáticos. Os adultos temíveis. As pessoas passam por mim como os faróis dos carros na BR-101 anoitecida. O meu baixo ventre é agarrado e torcido por dedos pegajosos. O burburinho caloroso ao meu redor rapidamente se transforma numa cacofonia rude. Tampo os ouvidos, mas não é o suficiente. O bolo na garganta interdita meus pulmões. Os meus pés ganham vida própria.
Estou na semiescuridão de uma clareira. O emaranhado de cipós e barbas-de-velho cria um isolamento acústico natural, diminuindo o estardalhaço social do parque a um murmúrio abafado e alienígena. O verdor ao meu redor tenta se comunicar. Ali, vem. Tem algo que você precisa ver. Na base das árvores, plaquinhas brancas proliferam ao lado de fungos, líquens e galhos caídos. São os nomes de batismo das plantas. Os nomes frutos da necessidade humana de classificar tudo que caça, voa, mergulha e germina.
Sinto o aroma dos brotos rompendo a camada de húmus sob o olhar das árvores idosas. Sinto também o poder curativo da aroeira. Schinus terebinthifolia. As reservas de força da castanheira. Bertholletia excelsa. O vermelho corrupto e oculto do pau-brasil. Paubrasilia echinata. Elas querem cuidar de mim.
As copas frondosas reduzem o céu matutino a um olho azul-celeste. De novo, minhas orelhas se espicham. Ouço o chamado. Não se preocupe. Já está tudo pronto. Basta cavar. A poucos passos, há uma enxada enferrujada fincada no solo. Pego o cabo de madeira e puxo como se fosse a Excalibur. A clareira é varrida pela brisa. Sim, agora sim. Com o coração e a mente abertos, começo a cavar.
Depois de alguns golpes, meus braços passam a fraquejar. A dor bate à porta do meu abdome. Não paro. Não importa. Quero pegar de volta o que é meu. Minha herança. O solo é pedregoso apesar da superfície macia: faz tempo que não cultivo o meu hipocampo; é um lote largado à mercê dos desastres do Tempo.
Os sons das crianças brincando e dos adultos brigando no parque virou ruído branco. Trabalho por um bom tempo. Enquanto cavo, cresço. Envelheço. Tiro a camisa e limpo o suor da testa. Consigo estilhaçar a grossa camada de cal. O que quero não está guardado numa cova rasa. Diante de mim, vejo um poço encharcado que requer um ato colossal de dragagem para ser transmutado num lago transparente.
Termino de tirar a roupa e mergulho na nascente misteriosa. Estou afundando dentro de mim. As bolhas de ar flutuam ao meu redor como fadas prateadas. No leito, vejo um conciliábulo de sereias ao redor de um baú gigantesco. Elas não ficam nem um pouco felizes ao me ver, mas se afastam. Descanso minhas mãos sobre a superfície intricada do baú. A tampa está revestida de corais, esponjas e algas. A madeira apresenta veios escuros e sulcos esbranquiçados: frases de uma língua que não compreendo. Quando ergo a tampa, irrompe uma cortina de bolhas velozes. O meu tesouro descansa sobre um tapete de seixos e ostras. Finalmente.
3.
Enquanto espero meu corpo secar, descanso as costas contra o tronco de uma gameleira. Ficus doliaria. O sol abrasador do meio-dia ilumina o útero de gimnospermas e angiospermas. Sobre o meu colo, descansa um álbum empoeirado e surrado. Folheio as primeiras páginas. As fotografias estão recortadas, desbotadas e mofadas. Acelero a passagem das fotos. Não encontro sinal de gente nem nas polaroides, nem nos negativos. Nada de crianças brincando na lagoa, nem idosos nas suas cadeiras de balanço, nem adultos sem camisa fazendo churrasco enquanto suas esposas fazem farofa e vinagrete na cozinha sufocante. O tesouro quer me dar uma direção. O álbum quer me mostrar uma mensagem. Quando chego na quinquagésima página, minha atenção recai sobre uma fotografia do pátio do Colégio Afrânio Peixoto.
Rapidamente, recolho minhas mãos. Eletricidade. As pontas dos meus dedos formigam. Os pelos da minha nuca ficam eriçados. Enquanto encaro a fotografia, minha saliva se mistura a um doce amargor. Começo a sentir o gostinho da madeleine de Proust. O meu fluxo de pensamentos vira um Powerpoint acelerado. As árvores dizem: Lembre-se. Lembre-se. Lembre-se. Com os dedos sobre a foto, estico a coluna. A lateral da minha cabeça lateja. Estico o pescoço e encaro o olho brilhante cercado pelas copas frondosas das árvores. Os raios desmaiados do sol atravessam o teto de galhos e folhas, gerando pocinhas de luz no solo escuro e macio.
Segundo a segundo, minha mente ganha velocidade. Estou sendo possuído pelo demônio da memória. Um tipo catatônico de regressão. No instante seguinte, o meu corpo cai de lado como se um covarde tivesse disparado uma pistola à queima-roupa. O meu pescoço vira um chicote com a violência do disparo, e minha visão fica turva e ensanguentada. No meio das árvores, há uma Sombra à espreita. A clareira não conseguirá segurá-la por muito tempo. Logo, rastejo em direção à cova inundada: o abismo que eu mesmo cavei. A Sombra dá os primeiros passos. Sem hesitar, me jogo no buraco e despenco como um saco de batata. A escuridão me abraça com seus dedos de fumaça. No retângulo iluminado acima de mim, a Sombra acompanha minha queda. Ela dá tchauzinho. E sorri.
4.
O relógio dá voltas infinitas, e o espaço-tempo se esgarça. Uma parcela da minha identidade é diluída no colapso do Tempo. Caio por horas e horas até que visualizo um diminuto anel iluminado no fim do túnel. Graças a Deus. Rapidamente, o anel vira um halo, e o halo, um pequeno sol. Sou envolvido pelo berço de luz fosforescente, que irrita minha pele e incendeia minhas retinas.
Quando consigo descolar as pálpebras semicerradas, vejo um entardecer familiar. Um amigo antigo. Um confidente. O sol, inchado e cor de abóbora, escorrega nas nuvens ensanguentadas. Lâminas de luz fazem cortes profundos no tecido celeste, deixando para trás estrias cinza-amareladas. O céu está morrendo. Preciso agir rápido.
Eu e a Memória trocamos figurinhas. Enquanto ela tenta reconstituir a cena ao meu redor, preencho os espaços em branco com minha criatividade. Reconheço os paralelepípedos da rua do Lírios. O bairro é o Jardim Laguna, onde todos os CEPs têm nomes de flores e frutos. Amêndoas, begônias, abacateiros, samambaias, cravos e pêssegos. Uma sociedade humana que tem como coração uma floresta.
O meu coração vacila quando encontro minha antiga casa, primeira casa. Os coqueiros ressequidos, o telhado de Eternit, a garagem cimentada e descoberta e a vidraça fumê das janelas. Familiar, mas estranho. Identificável, mas alienígena. Forço a visão tentando identificar os cantos ocultos dos corredores e quartos.
De repente, a calçada sob meus pés congela. O chão agora é uma camada fina de gelo negro e escorregadio. O bafo quente do entardecer se transforma no sopro gélido da madrugada. O sol alaranjado desaparece como se nunca tivesse existido. O céu agora é um dossel soturno capaz de silenciar qualquer palavra. A rua deserta é habitada por vultos azul-petróleo.
O silêncio estúpido da lembrança é invadido por gargalhadas de criança. As lâmpadas do meu vizinho estão acesas. Os meus passos calculados trituram a superfície gelada, culminando em ramificações que parecem teias de aranha. Reconheço o gigantesco portão branco e os azulejos esfumaçados da rampa da garagem da residência ao lado. Sim. Essa casa que mais parece um bunker é da família de Leonan, amigo de bairro e de escola.
De novo, ouço a bagunça de crianças. Durma. Os músculos das minhas costas ficam tensos. Durma agora. É a voz das árvores. Ou a Sombra. Os nervos do meu pescoço viram cordas, então preciso fazer um nó para enxergar o final da rua. Lá está ela, a Sombra a sorrir. A paralisia da noite diminui a distância entre nós, e consigo escutar nitidamente em minha mente os seus sussurros. Durma, mergulhe, afunde, deite, descanse, desabe, despenque. Não tem outro jeito.
Não tem. Sigo suas ordens.
5.
Os vinte centímetros que separavam o primeiro do segundo colocado no pódio dos Mais Altos da Sexta Série B não eram suficientes para Leonan. Ele era um garoto que não cabia em si. Os braços e as pernas se espichavam como os do Slenderman. Era de uma terra distante, e sua identidade ultrapassava os perímetros do próprio corpo.
Na hora do recreio, Leonan era o prato principal. Os moleques da turma organizavam um pique-alto no qual o epicentro era um desnorteado, mas participativo, Leonan. A brincadeira consistia em escalar bancos e mesas de granito ou escapar para a escuridão claustrofóbica dos corredores do Colégio Afrânio Peixoto. Os garotos diziam que se ele mal mal roçasse nos pelinhos do seu braço, automaticamente você era possuído pelo espírito ragatanga e virava boiola, no mesmo molde de uma bactéria super contagiosa que altera o equilíbrio químico do cérebro. Era um germe da maldade infantil, uma carnificina social entre crianças. Afinal, é na infância que escolhemos um time: ou perseguidos pelo Mal, ou transformados em Menino Mau. Os jovens tubarões sentiam o cheiro de sangue a quilômetros de distância. Cercavam Leonan. Brincavam com a presa. Devoravam pedaços da sua carne.
Eu observava tudinho do meu porto seguro ao lado da cantina. As gargalhadas de Leonan pareciam pedidos de socorro. Os meus dedos ficavam gelados, e o coração acelerava. Queria fazer algo grande, mas era pequeno demais. O meu desejo de ajudar morria em mim. Parecia um linchamento. Tampava os ouvidos e apertava os olhos. Veja. Veja. Veja! O ar frio lambia as maçãs do meu rosto.
Numa tarde sonolenta dos idos anos 2000, eu e Leonan amassávamos um pacote gigantesco de Cheetos Bola na dispensa de sua residência. O cômodo era claustrofóbico e estava abarrotado com prateleiras de enlatados, produtos de limpeza e sacos de alimentos não perecíveis. Na ultrapassada TV de tubo Philco, surgiu o menu pixelado da seleção de personagens do Street Fighter.
O combate entre Chun-li e Dhalsim foi pau a pau. No entanto, em poucos minutos, mesmo que esmagasse furiosamente os botões do controle do Nintendo, sucumbi diante do monge indiano e seu titereiro. Quando estávamos selecionando os lutadores para um segundo round, o ar viciado da dispensa foi sequestrado pelo estrépito agressivo de um desmoronamento.
Inicialmente, o rugido nos deixou desarmados e desorientados e pensamos que se tratava de uma retroescavadeira fazendo festa nas ruínas de um lote baldio. O silêncio que se instalou em seguida era ainda mais bizarro do que o estrondo apocalíptico de segundos atrás. Eu e Leonan trocamos olhares e, num pulo, ficamos de pé e corremos em direção ao portão e à calçada.
No final rua dos Lírios, um cogumelo de poeira ascendia aos céus e, no lugar onde deveria estar uma casa de três andares, havia somente um cemitério de vigas de aço e pedaços mordidos de concreto. Em poucos segundos, vários vizinhos brotaram de suas residências e, com rostos desfigurados pelo espanto, tentavam diagnosticar o ocorrido. Embora inusitado, não era inesperado. A última residência da rua dos Lírios era um casarão condenado pelos bombeiros e abandonado há séculos por seus antigos inquilinos. Passado tanto tempo, as forças do fóssil se exauriram e a construção finalmente veio abaixo. A casa mais bonita do Jardim Laguna se transformou num cenário de guerra.
Os lábios de Leonan estavam exangues, e suas mãos tremiam. Na verdade, o seu corpo inteiro vibrava. Sua atenção estava totalmente depositada nos escombros e na catástrofe. Os seus olhos tranquilos ficaram branco-gelo. “E se”, hesitou Leonan, “E se a gente fosse lá ver?” O meu rosto era um sinal de interrogação. Olhava para as bochechas sardentas de Leonan, tentando compreender até que ponto ia o que ele dizia. “Ir lá na frente ver?”, eu perguntei. Ele sopesou o peso do corpo e esfregou as mãos enquanto averiguava se havia algum adulto por perto. Olho no olho, Leonan sussurrou: Lá dentro ver.
Dito e feito. No restinho da tarde, procuramos por lanternas, barrinhas de cereais e garrafas de água. A ansiedade lançava gavinhas na parte inferior da minha barriga. Sentia qualquer coisa ininteligível, um tipo de curiosidade mórbida. Ouvi o sussurrar das árvores: Sim, venha. Aqui é o seu lugar.
Após o jantar, nós fugimos com a desculpa de que era de dia de catecismo. Os nossos pais, coitados, não desconfiaram. Eu e Leonan, Dom Quixote e Sancho Pança, caminhamos em direção à igreja e, depois de uns 100 metros, nos embrenhamos num canteiro de arbustos, esperamos em torno de 15 minutos e, por fim, escorregamos como sombras pelos caminhos que a iluminação pública não alcançava.
Eu e Leonan paramos diante do casarão arruinado como uma dupla de Power Rangers inexperientes. O que fazer agora? O quão perigoso pode ser? Por que é tão excitante? As perguntas rodavam como um torvelinho em minha mente. E, ao fundo, escutava a Sombra dizer: Bem-vindo de volta, André. Leonan, o garoto afeminado. André, o tripinha seca. Depois de um momento longo demais, invadimos o terreno acidentando, entulhado e poeirento.
O pórtico da casa era uma bocarra desdentada. Invocava os fantasmas dos primeiros moradores. O interior do casarão estava pra lá de Bagdá. O piso foi rachado por raízes mais grossas do que braços, e os azulejos sobreviventes estavam cobertos por um líquido vermelho-amarelado e fedorento. As cortinas estavam rasgadas como se atacadas por leões, e, no vidro partido das janelas, aranhas tentavam instalar suas novas residências. Curiosamente, encontramos uma quantidade pequena de mobília, que, claro, estava triturada como se um louco cego de ira houvesse orquestrado uma sessão de tortura com uma Makita. O que restava da escada em espiral do saguão era uma lembrança enferrujada no papel de parede carcomido. Uma parcela considerável do teto havia desmoronado, proporcionando a visão da Lua Cheia. Aquele céu noturno era um primo distante do céu amanhecido da clareira. Mitológico, íntimo e surreal.
Cada um dos Indiana Jones seguiu para um cômodo. Fiquei sozinho em meio às ruínas de uma residência que, numa época distante, fora um símbolo de opulência. Não me senti aterrorizado, nem angustiado, nem solitário. O que aconteceu dentro de mim foi diametralmente oposto à reação esperada de uma criança. Naquela gaiola devastada, encontrei as minhas amigas da clareira. As raízes que quebraram o piso. Os galhos da mangueira que destruíram o vidro das janelas. O musgo que revestiu o papel de parede. O limo verde-musgo que cobriu o carpete.
Aquele ar tinha consistência, e as ruínas ao meu redor, consciência. Naquele casarão abandonado, nasceu em mim o broto da solidão. Nada de velocidade. Nada de pique-alto. Nada de desorientação. Nada de cacofonia.
Vê? Você vê?
Não é pra ser triste.
Há beleza no abandono.
Há beleza mesmo no que não é belo.
6.
Parques abandonados, shoppings devastados, parques aquáticos interditados e rodovias esquecidas. Não consigo pôr em palavras o que é bonito nesses lugares arruinados, mas sou incapaz de negar o magnetismo que exercem. Há um quê de trabalho arqueológico ao encontrar edificações humanas destruídas, como se pudéssemos recompor uma fração da nossa identidade a partir dos rastros que deixamos para trás. É o estudo de um animal selvagem a partir de seu ninho. É uma presença na ausência. Os escombros localizam o que em nós é destrutivo. O não-lugar. O meio-termo entre recordação e previsão.
O “não-lugar”, neologismo cunhado pelo antropólogo francês Marc Augé, é um espaço anônimo de transitoriedade supermoderno. De forma resumida, é um local esvaziado de identidade cultural, como o saguão dos aeroportos, as linhas de metrô e os pontos de ônibus. Contudo, eu, particularmente, não consigo atribuir apenas um valor negativo aos “não-lugares”. Na minha experiência, não é só um lugar no qual as relações interpessoais beiram o impossível e a palavra de ordem é “estranhamento”. Para mim, estar num terraço vazio ou numa sobreloja empoeirada, onde ninguém pisa há séculos, é um modo de aperfeiçoar o relacionamento comigo mesmo.
Sendo assim, o lugar abandonado é uma redoma meditativa na qual não somente a ruína do espaço é aceitável, mas, também, a minha própria identidade arruinada. Os espaços abandonados são um pouco cínicos. Eles apresentam uma aura antissistêmica que, geralmente, não é encontrada em espaços modernizados, higienizados e intocados das cidades ricas.
De certo modo, uma ruína humana comprova, empiricamente, que nós existimos nesse espaço que chamamos de “Planeta Terra'“. É uma forma meio mórbida de autoafirmação, mas um caminho possível. O “não-lugar” também pode ser compreendido como um espaço de perspectiva diferente e dono de novas linhas de fuga. E, claro, não apenas no sentido artístico, mas também no filosófico. O espaço urbanizado à mercê do Tempo, embora faça parte do panorama das cidades, parece essencialmente deslocado. Em geral, a identidade e a expressão utilizam o lugar abandonado para inflar e reclamar os seus espaços no mundo. Nesses ambientes silenciosos, só resta nos escutarmos.
Numa sociedade na qual o capitalismo agressivo suprime seus direitos, coage sua existência e dilui sua personalidade, os lugares abandonados acabam sendo a materialização do desejo anárquico de, nem que seja por um segundo, ficarmos aquém da lei, da ordem e da moral vigentes.
Obrigado, Leonan, pela irresponsabilidade pueril. Obrigado, árvores, pelas viagens no Tempo. Obrigado, Sombra, por me mostrar o que eu precisava encontrar. O tempo suspenso e a solidão inerente dos locais esquecidos foram os maiores presentes que recebi na Minha Vida.
Pude reencontrar o meu descanso.
Pude entender minha ruína.
Pude implodir e explodir como uma supernova.
A paz, finalmente.